Quando o Wilco veio para o Brasil – a história de Mariana Neri

Quando o Wilco veio ao Brasil pela primeira vez, Mariana não estava lá.

Foi no Tim Festival de 2005, num ano em que o festival teve como cidade-sede o Rio de Janeiro, mas promoveu eventos menores também em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. Por um motivo que só posso identificar como o sofrimento sendo o destino inescapável de todo fã, e principalmente o do fã de Wilco, a banda foi a única do extenso line-up a se apresentar em apenas uma cidade, o Rio, onde Mariana Neri, a Nananeri do Twitter, hoje uma espécie de instituição internética de tudo relacionado ao Wilco no Brasil, não estava. “Pior história”, ela disse quando começou a me contar, e eu também custei a acreditar.

Além de Jeff Tweedy e sua turma, o Tim Festival daquele ano trouxe ao país pela primeira vez o Strokes e o Arcade Fire. O Brasil estava começando a conquistar um espaço no mapa das turnês de artistas internacionais e a presença das duas bandas no país, que então eram verdadeiros acontecimentos da cena alternativa, era uma espécie de milagre. Fã de Strokes e natural do interior da Bahia, Mariana queria muito conhecer São Paulo, onde hoje ela mora, e por isso preferiu prestigiar a edição do festival ocorrida na cidade. Ela chegou a ouvir Wilco por recomendação de amigos, que sugeriram que ela fosse vê-los no Rio, onde o Strokes também tocaria, mas a vontade de ir a São Paulo pela primeira vez falou mais alto. A gente só vive uma vez.

Nos onze longos anos que separaram a primeira vinda do Wilco ao Brasil do retorno da banda em 2016, a sensação que se tinha era de que quem viu, viu e esses que viram foram poucos e iluminados. No dia 22 de outubro de 2005, o Wilco tocou para uma plateia que se dispersou quase toda depois da apresentação do Arcade Fire, que subiu no palco antes deles. Azar de quem foi embora, pois o show daquela noite foi considerado uma “experiência formidável”, “duas horas de magnífica música ao vivo”, “perfeito e histórico” e um “orgasmo folk” (what), para citar as palavras de quem estava lá para ver. A apresentação se tornou uma lenda, uma espécie de folclore para quem gosta de música e ama o Wilco, uma história de bar do tipo que você só conta quando realmente quer impressionar alguém (ou se conectar instantaneamente com aquela pessoa por meio da tristeza de não ter estado lá), e que só ajudou a fortalecer o novo mito que nasceria, o do Wilco de volta ao Brasil.

Será que vai ter Wilco no Brasil?, era o que nos perguntávamos ano após ano, e a resposta era sempre um suspiro cansado e uma carinha triste que confirmava: não.

Foi com essa pergunta que Mariana lançou sua página na internet, a Is Wilco Coming to Brazil?, que começou como um Tumblr de brincadeira entre amigos e aos poucos foi se tornando um projeto que tinha como base investigar boatos de negociações, reunir fãs, fazer memes e montagens com os membros da banda e atormentá-los – com carinho – nas redes sociais. A página foi criada pouco tempo antes dela finalmente assistir ao seu primeiro show do Wilco, em 2012.

Foi preciso o Sky Blue Sky, sexto álbum de estúdio da banda, para converter Mariana de pessoa que nem liga pro Wilco para uma das maiores fangirls que todos respeitam. Seu batismo de fogo foram os cinco anos que ela passou remoendo o arrependimento da chance que deixou passar (vide a narrativa de sofrimento como parte essencial da experiência do fã, explanada no segundo parágrafo), sem nem conseguir ver os vídeos no Youtube, e sua redenção veio na forma do primeiro show deles que ela viu nos Estados Unidos.

Na época ela já estava com planos de visitar uma amiga em Chicago, terra natal do Wilco, e ficava monitorando a agenda da banda, que só tinha shows confirmados na Europa. No entanto, foi Miami, não Chicago, a cidade do primeiro show que Mariana assistiu: quando a data foi anunciada, ela comprou os ingressos antes mesmo de conseguir o visto para entrar no país, que fora negado uma vez. Mariana viajou sozinha, chegou na cidade um dia antes, e conta não conseguiu dormir de tanto nervoso – um estado que a acompanha até hoje antes das apresentações da banda, que ela recebe sempre eufórica e com as mãos tremendo. Nesse primeiro encontro, ela conta que começou a tremer quando viu os ônibus da banda na porta do teatro e não parou mais.

Nana em seu primeiro show do Wilco, em Chicago.
Nana no Solid Sound, festival bienal organizado pelo Wilco, em 2015.

Ainda era dia e eles estavam lá para a passagem de som. Ainda era cedo e Mariana estava lá porque o que mais ela ia fazer? Ela ficou nos fundos esperando alguém sair, “embaixo de um sol maldito”, e logo topou com Jeff Tweedy, vocalista e tio legal da humanidade, e deu de presente pra ele um disco do Alceu Valença. Ela contou que muita gente no Brasil achava o dedilhado de “Anunciação” muito parecido com o violão de “One Sunday Morning” e aproveitou para pedir duas coisas importantes: 1) que eles tocassem “I’m The Man Who Loves You” e 2) que o Glenn subisse na bateria no início da música.

Aos não iniciados, uma explicação necessária: Glenn Kotche é o baterista do Wilco e representante de uma das mais importantes instituições de qualquer banda que se preze – Glenn é o cara gato do Wilco (e o favorito de Mariana). Capricorniano e cheio de charme, é muito difícil não olhar pra ele durante os shows; ele é bonito, claro, mas também porque ele CAUSA, promovendo aquilo que os jovens chamariam com propriedade de moeção. Se o Wilco for mesmo o maior expoente do “dad rock”, como frequentemente é acusado, então esse pai é o mais rock’n’roll do mundo. É de Glenn também um dos rituais mais incríveis, do tipo que faz um show do Wilco ser uma experiência realmente única: no início de “I’m The Man Who Loves You”, quando a música é só um monte de riffs distorcidos de guitarra, ele fica em pé na bateria com os braços pra cima, pra descer num pulo, pegando embalo na música e começando a tocar.

É um dos poucos momentos que valem aquela justificativa insuportável a guisa de explicação: é preciso estar lá pra ver. Felizmente Mariana estava naquela noite em 2012, quando Glenn de fato subiu na bateria, e Jeff disse que foi graças ao pedido de uma young lady from Brazil. “Ela disse que é a coisa mais linda que ela já viu na vida e ela mora no Brasil, não sei se rio ou se choro”, disse ele, no seu típico humor de palco.

“O pessoal do meu lado me abraçava e dizia ‘sua música!’ e eu só pensava em como seria incrível ver isso com meus amigos”, ela conta. Depois desse primeiro encontro, Mariana viu a banda em duas edições do Solid Sound, festival promovido pelo Wilco que acontece a cada dois anos, outra numa viagem de última hora para o Arizona, além de prestigiar os projetos paralelos dos membros da banda, como o On Fillmore, de Glenn Kotche, e o Tweedy, duo que Jeff Tweedy tem com seu filho, Spencer – que ela também já viu tocar em Chicago com sua banda adolescente, o The Blisters. Mesmo assim a ausência do Wilco no Brasil ainda era uma enorme lacuna em sua carreira de fã.

Mariana aproveitava os pequenos encontros com a banda para falar sobre a Is Wilco Coming To Brazil?, tirar fotos e divulgar a página entre eles. No entanto, a empreitada ganhou força de verdade na internet quando começaram os boatos recorrentes que a banda iria tocar no Brasil. Todo ano, pelo menos umas duas vezes por ano, surgia o burburinho na rede e foram anos do Wilco quase vindo até a confirmação definitiva em 2016. Em fevereiro foram anunciados shows na Argentina, e isso, logisticamente, indicava que outros shows pela América do Sul poderiam vir. Em maio o Popload Festival acabou com o sofrimento dos fãs: is Wilco coming to Brazil? SIM! “Na hora que confirmou eu apenas GRITEI e meu marido, que tava trabalhando no outro quarto, já falou ‘CONFIRMARAM WILCO?’”, conta Mariana. “Levei uma meia hora pra conseguir comprar o ingresso no site porque não estava pensando direito”.

Depois do primeiro show em São Paulo, o Wilco confirmou mais dois shows no país: um no Rio de Janeiro e mais um em São Paulo, no Auditório do Ibirapuera, com ingressos a R$20 – uma benção e uma maldição. Com vendas simultâneas pela internet e em pontos de venda físicos, as pouco mais de 800 entradas se esgotaram em poucos minutos. No Twitter, em meio a todo o drama e sofrimento do momento, um monte de gente se perguntava: será que a @nananeri conseguiu? Todo fã brasileiro de Wilco é também meio discípulo e fã de Mariana, e ainda que todos quiséssemos muito estar no show, a gente sabia que ela merecia estar lá.

Mariana não tinha conseguido. Depois de mudar a data de uma viagem para o Uruguai (onde o Wilco também tocaria, numa apresentação que acabou cancelada) por causa do show, como a maioria das pessoas ela também não conseguiu comprar o ingresso online. “Na hora congelei, não sabia o que fazer”, diz. Foi só uma hora depois (Dor!!! Sofrimento!!! Drama que não acaba nunca!!) que veio a notícia de que uma amiga havia conseguido comprar pra ela direto do ponto de venda, ainda na primeira fila – surpresa que ela só viria a descobrir na hora do show.

A maratona de três shows do Wilco no Brasil começou na quinta-feira, no Rio de Janeiro. Ansiosa como sempre, ela quase não dormiu na noite anterior e passou o dia todo completamente surtada. Mariana conta que a sensação foi muito parecida com aquele primeiro show em Miami, mas com uma diferença importante:  “Quando cheguei no Rio fiquei pensando que era a primeira vez que eu viajava pra ver Wilco e não falava outra língua”.

Estavam com ela duas amigas que ela conheceu em suas andanças atrás do Wilco, pela internet e pelo mundo, unidas também pelo amor mútuo por Glenn Kotche. Elas encontraram o baterista no final, tiraram fotos e Mariana pediu demais pra que ele ficasse em pé na bateria em São Paulo, coisa que o moço ficou devendo para o público carioca. Em São Paulo, dois dias depois, ele entregou o pedido, apesar do charminho e de ter aposentado o movimento em 2013. Quando o Wilco tocou “I’m The Man Who Loves You” no palco do Popload Festival na arena Urban Stage no sábado, lá estava ele, de pé. “Quando acabou eu estava histérica, tremia horrores, gritava quando encontrava as pessoas”, ela conta. Foi o meu primeiro show do Wilco e, de fato, foi uma das coisas mais lindas que já vi na minha vida.

Glenn cumprindo a sua promessa no Popload Festival (foto: Fabrício Vianna)
Glenn cumprindo a sua promessa no Popload Festival (foto: Fabrício Vianna)

No domingo, último dia da passagem da banda no Brasil, Glenn levantou de novo e junto com ele todas as pessoas que estavam no Auditório, até então sentadas e comportadas demais diante da grandiosidade de tudo que acontecia. Foi um show perfeito, especial e único, ainda mais bonito quando todo mundo aproveitou a deixa de Glenn para correr pra perto do palco. “Eu raramente choro em shows porque sempre fico radiante demais e com vergonha do Glenn me ver chorando (risos), mas chorei de soluçar em You Are My Face. Acho que foi emoção acumulada depois dos shows e toda a saga”, diz.

A coroação daquele grande momento veio quando, já no bis, Jeff Tweedy anunciou “Hate It Here” e dedicou a música a Mariana – que dessa vez ele chamou pelo nome, não mais uma young lady from Brazil. Ela tinha se encontrado com a banda mais cedo, nos bastidores, e brincou com o líder que os fãs ficaram muito bravos quando ele disse em uma entrevista recente que aquela era uma das músicas que ele menos gostava de tocar. Não sabemos se “Hate It Here” já estava no setlist ou se foi uma adição de última hora, mas além dela ter sido tocada com dedicatória nominal, Jeff também aproveitou o momento para reconhecer Mariana como uma das figuras importantes e responsáveis pela vinda da banda ao país. O público começou a entoar “Mariana! Mariana!”, como numa torcida de futebol, porque a história dela era também um pouco da nossa naquele momento.

Quando entrevistei a ilustre Nananeri para esse perfil, falamos muito mais sobre tudo que veio antes e depois dos shows do que sobre os shows em si. Ela diz que é porque se atrapalha nas histórias por conta da empolgação com as lembranças que não acaba nunca (ainda bem!), mas tenho uma teoria melhor. Não conseguimos elaborar o que exatamente distingue um fã de uma pessoa que simplesmente gosta de alguma banda ou artista, mas acho que a diferença está na forma como deixamos aquilo fazer parte da nossa vida. A música é importante, mas quando a gente é fã de verdade não é apenas sobre a música, e sim os momentos e histórias que vem antes e dão um significado novo para aquele trabalho; são os laços que se cria com quem vive aquilo junto com a gente e quem está do nosso lado quando tocam a nossa música. Todo fã tem a sua música, que pode ser a música de outras pessoas, como também é de quem canta, de quem toca, de quem escreve, e os motivos são os mais variados. É íntimo e compartilhado ao mesmo tempo, e é aí que mora a mágica.

Quando o Wilco veio para o Brasil pela segunda vez, Mariana estava lá, de novo e de novo, e quem viu, viu. Eu estava lá e foi lindo.

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