Capa de "Melodrama", álbum da artista Lorde.

Melodrama: sentindo demais na loveless generation

O mundo descobriu a existência da então adolescente neozelandesa Ella Yelich-O’Connor pelo vídeo de seu primeiro single — que viria a atingir uma popularidade estrondosa —,  Royals. Sob o nome artístico de Lorde, a garota de 16 anos cantava com uma voz levemente rouca, olhando diretamente para a câmera. Seu som era tão minimalista quanto sua estética: imagens de tédio suburbano tinham uma composição de batidas espaçadas e harmonias vocais como trilha sonora. Nas letras, a refutação da ostentação coexistia com alusões à realeza: ouro e diamantes eram pouco interessantes, mas poder e reverência eram objetivos reais. Um bom prelúdio para as nove (catorze, na versão estendida) outras faixas de seu primeiro álbum, Pure Heroine (2013), no qual a construção de um simbolismo que eleve o mundano a um status mitológico configura como fio condutor.

Dentes, dólares, entranhas, sangue, costelas, coroas. Ser adolescente é visceral e magnânimo, e nossa narradora parece se manter sempre a uma distância segura, até um pouco cínica, de toda a loucura. Segundo sua entrevista à edição de abril da New York Magazine, seu eu de quinze anos encarava as cenas comuns da sua adolescência de uma forma tão antropológica que gostava de permanecer completamente sóbria para não perder um detalhe sequer. Mas se Pure Heroine é sobre controle — ou a ilusão dele —, Melodrama é sobre se perder. Nas palavras de sua criadora, “eu fui à festa e fiquei bêbada”.

Melodrama não é apenas sobre abrir mão do controle. Ele se propõe e a ser um álbum conceito, uma “ópera”, sobre a progressão de uma única festa: início, ápice, declínio. Começamos com o primeiro pedaço dele que nos foi apresentado, “Green Light”, uma música sobre o primeiro grande término de relacionamento da vida de Lorde; ou melhor, sobre a sensação dúbia de abrir-se para novas possibilidades enquanto o apego ainda está lá. Nela, ao invés das lacunas e silêncios que aprendemos a associar à artista, encontramos notas de piano, um ritmo frenético e dançante, enquanto a cantora diz que escuta “brand new sounds” em sua mente. É impossível desassociar sua mudança sonora da mudança geográfica que Lorde fez: o ritmo alude ao caos e empolgação da metrópole, e o clipe as reitera.

“Sober” e “Homemade Dynamite” deixam claro que Melodrama é, em alguns momentos,  literalmente sobre ficar bêbada em uma festa. Uma interpretação um pouco menos literal dessa frase nos leva de volta à ideia da perda de controle: a Lorde de 19 anos é alguém que faz as coisas, com diferentes graus de sucesso e esperteza — aliás, é como se a materialidade das coisas inviabilizasse por completo a visão tida por seu eu adolescente de estar acima dos acontecimentos, completamente capaz de prever causas e consequências. Quando vemos nosso eu lírico ir de espectadora a agente, percebemos que tudo se torna mais incerto. What will we do when we’re sober?

O retrato da(s) festa(s) evidenciam tanto a sua intensidade — em outra entrevista, dessa vez para o podcast da Rookie, Lorde associou o álbum ao “contato entre peles”, às grandes multidões — quanto o imperativo de que o que acontece nesses contextos não deve, via de regra, ter significado. We act around like we just don’t care, but we care. E está tudo bem, até o momento em que não está mais.

É essa conversa que, de modo geral, as ballads e as músicas “dançantes” do álbum fazem; mas que “Sober” e seu interlúdio (“Melodrama”) realizam com maestria. A primeira utiliza batidas e metais, e sua letra traça os contornos de uma relação que deveria ser casual e talvez esteja indo além disso, mas que nossa narradora não quer analisar o suficiente para compreender (afinal, esta não é Lorde antropóloga, e sim, Lorde agente). “Melodrama”, por sua vez, começa com uma voz solitária que sente os efeitos (e sentimentos) das ações da noite passada, e lamenta que I know you won’t remember in the morning when I speak my mind. Sonoramente, temos uma mistura de batidas eletrônicas — nos situando, afinal, em uma festa — e cordas, dimensão que evoca o clássico, o romântico, o sentimental, o melodramático. “Sober” é, ironicamente, a embriaguez; “Melodrama”, a ressaca.

Narrativamente, partimos da abertura ao novo após o término de uma relação (“Green Light”), passamos pela vida de festas intensas (“Sober” e “Homemade Dynamite”), vemos o início empolgante (“The Louvre”) e o fim doloroso (“Liability”) de um amor, suas reverberações (“Hard Feelings / Loveless”) e o processo de recuperação (“Writer in the Dark”, “Supercut”) e, finalmente, o retorno à vida das festas em uma busca de experiências e sentido (“Perfect Places”) renovada, de certa forma, por uma descrença na possibilidade de alcançar um grande sentido de fato (what the fuck are perfect places, anyway?). Todo esse ciclo narrativo está envolto, como previsto pela qualidade de concept album, pelo ambiente de uma festa. Sentimentos não cabem nesse contexto no qual a casualidade impera, mas acabam vindo à tona de qualquer jeito. Voltando à ideia das músicas serem a progressão do tempo em uma única festa, é possível associar os momentos de entrega sentimental àquela hora do rolê na qual você está chorando no colo da amiga, ou olhando seu estado no espelho e questionando todas as decisões que te levaram até ali. Até mesmo as festas mais barulhentas têm seus espaços silenciosos — e eles transformam seus pensamentos em algo impossível de ignorar.

Depois de todo sentimento, temos a realização, por parte da narradora, de que esta é uma l.o.v.e.l.e.s.s. generation, que prefere reprimir seus sentimentos a entendê-los, o conforto da ausência de significado à responsabilidade de reconhecer que o sentido das coisas é completamente subjetivo e não pode ser controlado por ninguém. Em seguida, a sua reinserção na mesmíssima narrativa, porque a única coisa pior do que estar em meio ao caos é não estar. Sabemos — e ela parece saber também — que é só uma questão de tempo até ela entrar novamente nessa montanha-russa.

É interessante perceber como a sonoridade dialoga com as (excepcionais) letras. Enquanto as músicas mais profundamente inseridas no ambiente de festa abusam de batidas eletrônicas e, no caso de “Sober”, até de ritmos associados ao instintivo e visceral; os momentos de vulnerabilidade colocam o piano como elemento central (“Liability” é o exemplo mais cru disso) e, no caso de “Sober (Melodrama)”, incluem até cordas. “Green Light” mistura esses elementos sonoros, da mesma forma que mistura os dois “moods” aos quais eles aludem. Talvez a associação de instrumentos mais tradicionais à emotividade seja um lugar comum, mas a manipulação desses elementos para criar um ambiente em cada música é fascinante. “Sober (Melodrama)” faz um uso ainda mais complexo dessas associações: ela está no pólo da emotividade e fragilidade, colocando as cordas logo no início. As batidas eletrônicas entram depois e, por fim, encontramos ambos coexistindo enquanto Lorde canta e reflete sobre os acontecimentos da noite passada e seu peso real. É como se as batidas estivessem ali como um plano de fundo, para nos inserir no contexto material da festa; enquanto os violinos explicitam o reconhecimento do potencial sentimental e melodramático daquelas situações.

Ainda em sua entrevista para o podcast da Rookie, Lorde caracteriza uma arte bem feita como aquela que é capaz de expor exatamente o que sua mente era naquele momento. Ela também fala dos anos que resultaram em Melodrama como os primeiros no quais ela, uma “introvertida pura”, se expôs pesadamente a situações sociais, tentando constantemente estar presente no momento ao invés de cair em um distanciamento involuntário. Como em Pure Heroine, ainda existe uma tentativa de elevar experiências comuns, dessa vez pela via do sentimento melodramático (duh) ao invés da invencibilidade mitológica. Talvez por esse mesmo motivo exista um aspecto mais marcadamente atrelado ao tempo e espaço em Melodrama. O eu adolescente de Lorde busca a universalidade — como uma forma de controle da realidade ao seu redor, até — enquanto as letras de seu “adulto recém nascido” buscam apenas fazer sentido dos acontecimentos e sua reverberação interna. Por mais que haja uma valorização do sentimento em Melodrama, a inclusão dessa dimensão ao retrato de um ambiente onde gostam de fingir que ela não existe resulta em uma imagem mais honesta do que fantasiosa ou exagerada.

Talvez seja necessário fazer um disclaimer: minha similaridade etária e sensível a da Lorde-autora-de-Melodrama torna a confecção de uma resenha distante quase impossível. Sendo bem honesta, é difícil saber onde as percepções da autora terminam e minhas projeções em cima delas começam. Mas tá tudo bem. Se tem algo que devemos levar de Melodrama — e, diga-se de passagem, de toda uma linhagem de pop que também inclui o Emotion de Carly Rae Jepsen e o 1989 de Taylor Swift — é que nossa vulnerabilidade não é algo a ser escondido, mas explorado e mostrado para o mundo todo ver. O que, no final das contas, nos torna humanos. Megaphone to my chest, broadcast the boom boom boom boom and make them all dance to it.

Tavi Gevinson não só realizou a já citada entrevista no podcast da Rookie como é uma amiga relativamente próxima de Lorde, tendo acompanhado a artista ao longo de seu processo criativo.  No início do segundo episódio dedicado à entrevista, Tavi menciona como a transformação da cantora durante a criação do álbum é a maior prova que ela tem do poder terapêutico do ato de processar a sua vida pela arte. Parte do processo de lidar com toda dor (e êxtase, também) envolve aceitar que as coisas podem e devem nos atingir, e que a maneira com que isso acontece não respeita nenhuma regra, quer social, quer autoimposta. E a partir disso, quem sabe, transformar suas sensações em algo tão bonito quanto Melodrama.

 

Faixas-chave: “Green Light”, “Hard Feelings / Loveless”, “Sober”, “Sober (Melodrama)”

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *