Logo de Black Mirror, um vidro quebrado com um emoji sorridente no meio.

Primeiras impressões: Black Mirror

Até outubro do ano passado, eu não sabia quase nada sobre Black Mirror. Eu até sabia da existência da série e uma professora exibiu para a classe na faculdade (confesso que bastou desligar a iluminação do auditório que eu instantaneamente peguei no sono e não vi nada), mas não conhecia nenhuma pessoa que assistia à série. Até que a Netflix lançou a terceira temporada e de repente não se parava de falar nisso, virou até meme. Como tudo que é muito falado, ficou enjoativo e não tive interesse em ver, situação mudada por conta de recomendações cheias de paixão do meu namorado. Resolvi encarar a série e possivelmente entender o que é essa história de ser “muito Black Mirror”.

"OLOCO MEU, ISSO É MT BLACK MIRROR" acompanhando uma foto de uma pessoa passando Nutella na tela de um celular.

Algo que me animou para ver a série foi saber que eu poderia ver os episódios de forma independente e em qualquer ordem. Comecei direto na terceira temporada, com cinco episódios de aproximadamente uma hora e um último mais longo, com uma hora e quarenta minutos. Black Mirror foi criada por Charlie Booker e cada episódio é uma crônica da relação do ser humano com tecnologias, mostrando que, como todo relacionamento, há sempre muita complexidade envolvida. A série pode ser classificada como ficção especulativa, ou seja, ela representa sociedades diferentes em que a tecnologia tem um papel principal. Vejo cada episódio como uma distopia, uma sociedade fictícia que intensifica alguns aspectos da vida atual, como o futurismo e aspectos do totalitarismo (alguns exemplos conhecidos de narrativas distópicas são Jogos vorazes, 1984 e Admirável mundo novo).   

E se você se perguntou “Por que a série chama Black Mirror?” basta pegar seu celular na mão e desligar a tela para entender. O mesmo vale para qualquer tipo de monitor ou televisor desligado. A série nos convida a refletir sobre todas as formas de tecnologia – ligadas ou desligadas – em nossas vidas de uma forma intensa e bastante emocional, com cenas fortes e instigantes. Não é aquele tipo de série que você pode ver para se distrair, relaxar ou dar risadas. Após o final de cada episódio surge um turbilhão de pensamentos e angústias sobre a vida, o universo e tudo mais.  

Aviso de spoiler: A partir de agora vou falar de cada episódio. Caso você não queira saber detalhes é melhor salvar o link para voltar e ler depois.

 

Queda Livre

O primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror apresenta uma sociedade distópica pautada em uma avaliação de pessoas por notas. Todas as pessoas têm um aparelho semelhante a um smartphone e uma espécie de perfil em rede social, destinado a mostrar a sua própria vida, por meio de fotos, vídeos, textos, etc. E a nota das pessoas, em escala de 0 a 5, é decisiva para muitas coisas, como alugar um apartamento, entrar em determinados locais, ser convidado para eventos, entre outros.

“Queda Livre” apresenta a história de uma mulher que é 4.2 e precisa aumentar sua nota para conseguir desconto para alugar um apartamento e morar sozinha, sem seu irmão (3.8). Por conta disso, ela faz de tudo para ganhar notas altas de todas as pessoas ao seu redor: puxa assunto no elevador, é ultra simpática com todos que passam por ela, dá o melhor de si para ser solícita com todo mundo com o objetivo final de ganhar status.

Cena de "Queda Livre", episódio da terceira temporada de Black Mirror.

Os seus planos começam a dar errado quando ela perde um avião que a levaria para ser madrinha de casamento de sua amiga Naomi (4.8), o que lhe traria muitas boas notas. Sem entrar no avião, ela fica nervosa e um segurança, além de rebaixar sua nota, a castiga com um dia de notas baixas dobradas – ou seja, quando alguém a classificasse com uma nota ruim, a sua média abaixaria em dobro. Isso faz com que ela perca muitos pontos em sua jornada para chegar ao casamento e sua avaliação pessoal despenque em “Queda Livre”.

A principal reflexão gerada em mim pelo episódio foi sobre o que vemos nas redes sociais. O que é real e o que é postado ali somente para obter status e os deliciosos likes? Como é custoso, estressante e incompleto viver uma vida de aparências. E será que vale a pena reprimir as próprias emoções e seguir comportamento de manada em nome de alguns pontos em uma rede social? É realmente necessário se mostrar bem e feliz para o mundo mesmo quando as coisas não estão legais com você?

Esse episódio me causou a famosa bad e me fez analisar e repensar alguns comportamentos referentes ao meu uso de redes socias. Também me lembrou o poema “Shape”, que gosto muito, da escritora Yrsa Daley-Ward:

“If you have to fold

to fit in

it ain’t right”    

 

Versão de Testes

Após o trauma de perder o pai, Cooper decide viajar o mundo em busca de novas memórias para si. Com suas economias, ele roda todo o globo, mas perto de voltar para a casa, em sua última parada na cidade de Londres, ele se vê sem nenhum dinheiro. Recorre a uma amiga para ter um local para dormir e vê em um aplicativo de empregos uma oportunidade em uma empresa de jogos para testar um novo projeto. Cooper rapidamente aceita os termos e é contratado para entrar em um jogo que exploraria seus principais medos.

Esse episódio conta com uma grande dose de terror psicológico e pode dar bastante medo. A reflexão principal sobre ele, para mim, foi a respeito dos limites da tecnologia, o quanto ela pode nos influenciar e os efeitos dela sobre nós. Ninguém sabe muito bem quais são os efeitos de exposição diária e em tão grande quantidade a formas de tecnologia a longo prazo. Com vários avanços em campos desconhecidos, como ela pode nos afetar? São muitas perguntas mesmo e ninguém tem uma resposta concreta para nenhuma delas.

 

Manda Quem Pode

O episódio é iniciado mostrando a vida de Kenny, que parece um adolescente normal, trabalhador e prestativo, mas bastante reservado com suas coisas. Ele fica extremamente nervoso ao chegar em casa e encontrar a irmã usando seu computador e ainda mais irritado quando percebe que ela pegou um vírus. Nesse momento, o computador de Kenny é hackeado e quem está por trás disso – uma “entidade” que passa a ser chamada de Eles – usa a webcam do computador para filmar o garoto em momentos constrangedores e passa a chantageá-lo em uma grande cruzada, cheia de tarefas pela cidade.

Durante o episódio, vendo o transcorrer das ações e tudo o que ia acontecendo por conta de uma filmagem indevida, eu tomei a providência imediata de colar um adesivo na minha própria webcam. Provavelmente uma das coisas mais fortes na série é que você passa a acreditar que todas aquelas coisas podem acontecer com você. Mesmo naqueles episódios em que a realidade parece mais distante da nossa, as atitudes dos personagens continuam sendo humanas, coisa que eu, você e eles temos em comum.

Assim como os anteriores, o episódio me deixou tensa o tempo todo e, quando eu achei que finalmente poderia me acalmar: tapa na cara. Ele mexe muito com instintos primários, de autopreservação. É violento, tanto no aspecto físico quanto emocional. Causa desconforto o tempo todo. Apesar disso, não é um daqueles que causa uma “bad” quando termina. Embora lembre temas como espionagem e invasão de privacidade, que sempre geram muito debate e polêmica, é uma história que termina em si própria, o que não é nenhum demérito também.

 

San Junipero

O episódio começa nos anos 1980, com uma garota querendo fugir de um ex-ficante e usando uma moça que ela nem conhecia como desculpa para não conversar com o ex. Então elas começam a conversar, pedem um drink, vão para a pista de dança. Uma delas, Kelly, é super extrovertida e quer muito se divertir enquanto a outra, Yorkie, está obviamente tensa e deslocada por estar no local, sem entender muito bem como agir e recusando as formas de diversão que Kelly propõe.

Tudo parecia uma história normal, com uma trilha sonora incrível, roupas e tecnologia da época, até que Kelly desaparece. Nesse momento, Yorkie passa a procurá-la em diversas décadas diferentes, mostrando o final dos anos 1980, os anos 1990, anos 2000. A passagem de tempo é marcada principalmente pelos modelos de TV, pelas músicas que tocam na boate que elas frequentam e pelo vestuário dos personagens. É uma forma muito interessante de marcar o tempo, despertando a nostalgia de quem vê.

Cena de "San Junipero", episódio da terceira temporada de Black Mirror.

Entre o primeiro encontro e o segundo encontro Kelly e Yorkie têm um romance, mas, como Kelly afirma no começo, ela queria apenas diversão. No entanto, esse encontro que deveria ser apenas sexual criou um elo entre as duas, que passaram a conversar mais sobre as suas vidas e suas histórias, que são bastante difíceis de entender até o final do episódio.     

San Junipero, a cidade onde elas estão, é um local criado por meio de tecnologia com o objetivo de ser uma vida após a morte. É criado um mundo fictício, mas com relações humanas e vestígios da cultura do nosso mundo real. O mais interessante do episódio é mostrar a ligação de um mundo com o outro e como essa passagem entre eles é totalmente pautada em sentimentos e relações humanas de amor, afeto, completude ou mesmo arrependimento sobre como a vida foi levada. Outro aspecto que vale a pena ser destacado é a relação sincera e delicada entre as duas mulheres. A relação delas me pareceu enriquecer a história e torná-la muito mais interessante do que seria se o casal apresentado fosse heterosexual. O episódio com certeza gera muitas reflexões sobre a finitude da vida e as relações que estabelecemos nela.

 

Engenharia Reversa

O quinto episódio da terceira temporada de Black Mirror já começa se apresentando como uma sociedade distópica, assim como o primeiro. Acompanhamos uma patrulha do exército saindo em uma missão, levando Stripe, um novato. A equipe foi acionada por conta de um crime cometido por baratas. Nesse primeiro momento é difícil entender o que seriam essas tão temidas baratas, até que a patrulha acaba na casa de um religioso fanático, conhecido por abrigá-las. Ao vasculhar a casa encontram três delas: criaturas que parecem zumbis. Sem pensar duas vezes Stripe mata duas dessas “baratas”.

Como era de se esperar, Stripe começa a sentir coisas estranhas e se comportar de forma diferente após o encontro com novas baratas. Em sua segunda missão, com uma companheira apenas, os dois deparam-se com uma grande colônia de baratas e a parceira de Stripe atira para todos os lados querendo matar uma por uma. Stripe recua: ele não vê baratas, mas humanos.

No decorrer da história, entendemos que o exército foi responsável por implantar em seus soldados uma tecnologia que comanda seus sentidos e ilude as suas mentes, fazendo com que eles enxerguem os alvos como baratas, com o intuito de higienizar as próximas gerações da raça humana. A explicação me cai como uma bomba: por que algum líder de estado faria isso? Então me lembrei do livro Maus de Art Spiegelman, que retrata a Segunda Guerra Mundial por meio da metáfora de animais e, consequentemente, me lembrei da política de Adolf Hitler. Nesse momento a mente vai longe. Como a tecnologia passou a perna na raça humana tantas vezes? Ainda não estamos no momento retratado na série, com implantes de computadores dentro de nossas próprias mentes, mas já vimos outras formas de tecnologia de destruição em massa até piores, como tanques de guerra, canhões, a bomba atômica. Provavelmente a máxima que melhor se enquadra aqui é “informação é poder”.

Stripe termina o episódio em negação total, porque apesar de consentir com o implante da tecnologia em si, não era sua intenção matar humanos desarmados e em situação de total desamparo, tal como ocorreu aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial e no livro de Art Spielgman em que não eram as baratas, mas os ratos a serem exterminados.

 

Odiados pela Nação

A trama do último episódio da terceira temporada de Black Mirror começa com uma morte muito estranha: uma jornalista que escreveu um artigo polêmico e despertou ódio da população local, ameaçada e xingada nas redes sociais, aparece no porão de sua casa com o pescoço cortado por uma garrafa de vinho quebrada. O principal suspeito é o marido, que diz ter sido a esposa que causou aquilo a ela mesma.

Cena do episódio "Odiados pela nação", da terceira temporada de Black Mirror.

No dia seguinte, um polêmico cantor, também vítima de ódio nas redes sociais, morre da mesma forma que o marido da primeira vítima descreve. Os detetives de polícia só conseguem relacionar as duas mortes quando o resultado da autópsia da primeira vítima encontra um corpo estranho no cérebro dela. A análise mostra que o que causou a morte foi uma abelha robô, uma espécie de drone criado para substituir as abelhas reais, que entraram em extinção. Por meio da investigação movida pela equipe, em especial pela estagiária recém chegada da área de tecnologia, descobrem que os assassinatos fazem parte de um jogo de hashtags no Twitter. A pessoa mais odiada de cada dia receberia uma visita dessas abelhas robôs.

Toda a complexidade da história e da investigação tornaram este o meu episódio favorito da terceira temporada. Ele é um pouco maior que os outros, com 1h40 de duração, poderia até ser considerado um filme policial. Como todos os episódios da série, há também uma reflexão sobre tecnologia e o que colocamos em nossas redes sociais. A internet pode até dar uma sensação de anonimato e liberdade de expressão, mas não é bem assim que funciona no final das contas.

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