Antes que eu vá: Em defesa de Samantha Kingston

Você já sofreu bullying? Já teve que lidar com apelidos negativos, se encolheu ao passar por algumas pessoas e desejou sumir para não ter que lidar com todas as merdas da escola? E você já esteve do outro lado, o lado de quem coloca os apelidos, comete o bullying e ri dos colegas? Samantha Kingston, protagonista de Antes que eu vá (Lauren Oliver), faz parte do segundo grupo, mas, apesar disso, eu preciso defendê-la.

Aviso: este texto contém spoilers!

No livro, somos apresentados a Sam e suas melhores amigas, as fiéis e inseparáveis Lindsay, Elody e Ally. As quatro são as rainhas da Thomas Jefferson, o colégio em que estudam. Com seus sorrisos arrogantes, namorados cobiçados e popularidade, as quatro vivem uma vida perfeita, cheia de festas, danças em cima da mesa, noites de conversas íntimas e dias matando aula pra tomar sorvete. Odiáveis aos olhos de muitos, as quatro riem, fazem piadas, espalham boatos e jogam bebida na cabeça de colegas que estão lá embaixo na pirâmide social. Até que chega a sexta-feira, 12 de fevereiro, o Dia do Cúpido na Thomas Jefferson — um dia em que a quantidade de flores que se ganha diz muito sobre sua popularidade, e é claro que as amigas estão esperando receber várias.

Além do mais, é o dia em que Sam pretende perder a virgindade com o namorado, o que está a deixando bastante tensa. Porém, ao voltar de uma festa com as amigas, algo inesperado acontece: Lindsay bate o carro e Sam morre. E então acorda em sua cama no dia seguinte, acreditando que tudo foi um pesadelo. Porém não é o dia seguinte e não foi um pesadelo: Sam está novamente no dia 12 de fevereiro, revivendo o dia de sua morte. Ela recebe seis novas chances, vivendo sete vezes o mesmo dia e tentando corrigir erros e descobrir o que a está prendendo nesse ciclo interminável que sempre a faz acordar no dia 12 de fevereiro. Sete chances de salvar sua vida.

Tudo bem, deixa eu dizer uma coisa: Samantha Kingston é uma vaca. Uma garota má. Aquela que ajuda a colocar apelidos nos colegas e que ri deles pelas costas. Ela se acha superior com seu grupo de amigas, invencível, uma rainha em seu trono. Zomba dos calouros, mata aula e faz piada sobre o suicídio de um garoto. Ela reclama da irmã caçula, ignora os pais e, em um dos dias, até rouba o cartão da mãe para gastar com roupas e restaurante caros.

Agora, uma segunda coisa: Samantha Kingston só tem 17 anos.

Ela é uma adolescente. Errada, sim, de muitas maneiras, mas apenas uma adolescente, uma garota descobrindo quem é, testando limites e vendo quão flexíveis eles são, pois, afinal de contas, ela é uma das rainhas da escola e tem liberdade de fazer o que quiser sem represálias. Sam comete erros no seu primeiro dia, antes de morrer pela primeira vez, pois sabe que vai sair ilesa disso. Ela não recebe limites daqueles que deviam ser responsáveis por ela — pais e professores, por exemplo — e tampouco busca por eles. Mortalidade não é algo que passa pela cabeça de uma garota que está no último ano do ensino médio, pronta para ir para a faculdade. Ela só quer aproveitar o último ano com suas melhores amigas antes que cada uma vá para uma universidade diferente, antes de ter que assumir maiores responsabilidades.

Humana, a garota é uma personagem tridimensional que não é constituída apenas de erros e tem nas amigas verdadeiras irmãs. Uma das coisas que mais me deixa apaixonada pela Sam, aliás, é a relação com Elody, Lindsay e Ally. Assim como Sam, todas cometem bullying diariamente com tudo e todos, mas a forma como elas lidam uma com as outras mostra que são mais do que as meninas malvadas da escola — elas guardam segredos, consolam e se ajudam. É uma relação tão sincera e verdadeira, do tipo que raramente se encontra na literatura, que é difícil não sentir pelas garotas o que a Sam sente — e em um dos dias, quando a Elody morre no lugar da Sam, é impossível não derramar lágrimas junto com a protagonista. “Morrer não é indolor“, ela diz, chorando, mas ninguém compreende, ninguém sabe que ela já passou por aquilo antes, que ela sabe que Elody sentiu dor e que ela não queria que fosse a amiga em seu lugar no banco do carona. A relação das quatro é linda, permeada de diálogos comuns de melhores amigas, xingamentos amigáveis de “vadia” e “piranha” (que só existem quando se há um nível bem grande de intimidade entre as partes envolvidas) e amor. Sam, Lindsay, Ally e Elody se amam.

Assim, nessa humanidade da Sam é que eu sempre busco sua defesa. A maioria das pessoas que eu conheço que leram o livro (não muitas, infelizmente), tende a taxar a personagem apenas como mais uma das garotas más que nos atormentaram na escola. E não acho que eles estão errados — eu mesma admito que Sam é essa pessoa, porque não há forma de negar. Mas isso a torna ruim a ponto de merecer morrer? Não apenas morrer, mas reviver o dia de sua morte em looping? A própria personagem nos traz esse questionamento:

Mas antes que comece a me acusar, permita-me fazer uma pergunta: o que fiz foi realmente tão ruim? Tão ruim que eu merecia morrer por isso? Tão ruim que eu merecia morrer assim? O que fiz foi realmente tão pior do que o que todo mundo faz? É realmente muito pior do que o que você faz?

E, olha, falando pessoalmente, não acho que Sam foi pior que muitas pessoas. Maldade não se mede, eu sei, bullying é algo que pode acabar com vidas — e Antes Que Eu Vá trabalha bastante isso na imagem da Juliet e da própria Samantha —, mas volto a repetir: Sam é apenas uma adolescente. Ela não merece ser crucificada por seus erros e pagar com a morte. E, ainda que isso seja uma punição “justa”, por que deve ser ignorada toda a evolução da personagem ao longo de seus sete últimos dias? Eu não consigo deixar de chorar e amar a Sam quando ela se despede dos pais com um “Até mais tarde”, sabendo que não vai mais vê-los. Quando ela abraça as amigas e diz que elas são amigas hoje e para sempre. Quando ela enfim se dá conta que gosta de um dos garotos mais zoados da escola, e que pode deixar com ele uma boa memória após sua morte. Porque tudo que ela faz, todas as suas tentativas de se salvar, culminam sempre no mesmo resultado, na sua morte, e chega um ponto que ela sabe disso e quer apenas corrigir seus erros e deixar a vida das pessoas o melhor possível após sua partida.

Samantha Kingston, uma personagem injustiçada e tratada como apenas uma garota rasa, não ganha o benefício da dúvida por seus atos adolescentes — ao contrário, ela é culpada, julgada e condenada. E todos parecem esquecer que se trata apenas de uma jovem de 17 anos que acredita ter o mundo nas mãos, exatamente como todos nós acreditamos que o temos o nosso mundo, aos 17 anos.

Um comentário sobre “Antes que eu vá: Em defesa de Samantha Kingston

  1. Ótima resenha! Perfeito. Sou homem, casado, quase 30 anos, e pelo contexto de minha vida, algo bem diferente do “mundo” desse livro. De certa forma, esse nunca foi meu tipo preferido de leitura, mas decidi arriscar. E foi a escolha certa. A autora conseguiu explorar a Sam bem em seu âmago, e, pra quem conseguiu entender bem a mensagem, o entendimento que fica é (pelo menos pra mim): Não devemos realmente julgar alguém, pelo menos não sem conhecer QUEM é a pessoa e o CONTEXTO de toda a situação vivida até ali pela mesma. Nós somos fruto do ambiente, e o ambiente que nos cria só pode ser alterado mediante muita reflexão. Há outra mensagem implícita também: A vida vai muito além do que (achamos que) vivemos no dia a dia. Cada dia, cada hora, cada minuto é hora de julgar a nós mesmos, repensar atitudes e dar valor ao que nos rodeia, independente de ser algo simples ou complexo.

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