Personagens femininas “fortes”: o caso de Skyler e Darlene

Desde sempre as personagens femininas são retratadas na mídia, de uma maneira geral, como personagens fracas ou trampolim para o protagonista – homem – crescer. Apesar de estarmos em 2017 e questões como feminismo, representatividade, causas LGBT e racismo serem discutidas, ainda assim não temos uma representação satisfatória na mídia e, algumas vezes, o público também não sabe receber essa representação. Falando da questão feminina, sempre fico chocada com o quanto conheço mulheres incríveis na vida real – famosas, amigas, familiares, conhecidas, pessoas que conheço somente pela internet –, mas o mesmo não acontece nos seriados e filmes.

De uns tempos pra cá tive contato com muitos amigos que assistem Mr. Robot e endeusam a Darlene como uma ótima mulher em um seriado que aborda questões atuais, seja de introspecção e saúde mental até o capitalismo. A Darlene nunca me convenceu como uma boa personagem feminina e eu não sabia o motivo disso até que concluí o pensamento depois de ver o episódio 10 da segunda temporada.

No episódio em questão, Darlene faz um discurso para Cisco (seu ex-namorado) em um hospital, contando sobre sua infância. Aquela cena me deu náusea. A personagem, que muitos têm como uma mulher ativa, diz que preferia viver com os pais em um relacionamento abusivo a se distanciar do irmão. Oi?

Toda a trama de Mr. Robot se passa em torno de Elliot e seu grande plano para derrubar uma corporação (ECorp) e beneficiar a humanidade com isso; Darlene, sua irmã, entra no plano sem pensar duas vezes.

Darlene é uma mulher adulta, aparentemente independente, mas que se veste como uma adolescente, toda a caracterização dela parece um bibelô: saias, meias longas, óculos de coração, pirulito na boca (sem falar da atitude teimosa de quem bate o pé dizendo “mas eu quero isso!”); Darlene é representada fisicamente como uma adolescente apesar de não ser uma. Ela termina com o namorado porque ele a  pediu em casamento, mas eles continuam próximos e ficam de vez em quando, pois ele também acaba entrando no grupo dela e de Elliot (FSociety).

A personagem em questão, assim como todos os outros, é liderada pelo seu irmão, que no fim da primeira temporada descobre que está com alucinações e se ausenta do esquema por grande parte da segunda temporada. O que acontece quando o Elliot sai de cena? Nada. O plano não acontece. Ele não regride e não progride, nada acontece. Darlene assume a liderança e não toma atitude alguma com relação ao plano, ela fica ganhando tempo até o Elliot retornar e, quando não tem mais como ganhar tempo, ela vai visitá-lo pedindo por ajuda.

As atitudes que Darlene consegue tomar são atitudes de reação apenas e nunca de ação: a festa pra apagar as digitais da casa e um plano pra botar o FEMTOCELL (um aparelho que repassa as informações da ECorp para a FSociety) em um escritório para travar a investigação do FBI, mas o plano em si fica parado.

A personagem parece começar com uma grande promessa e propósito, mas tudo desanda no caminho: os roteiristas parecem ter chutado o balde. Ela vive na sombra do irmão; ela faz questão de dizer a Don que o plano não é dela (e não pra se safar, mas porque parece que ela não quer receber mérito algum por aquilo visto que a grande pessoa por trás disso é o Elliot); é preciso o Cisco gritar com ela pra dizer que ela não tá no controle de nada pra ela parar de bancar a pose (alá o homem que precisa fazer a mulher cair em si!); ela mata uma mulher em um ato de desespero para “vingar” a morte do pai, sendo que em momento algum da série ela demonstrou que a morte do pai era uma questão pra ela (ao contrário de Elliot, que faz isso o tempo todo). Sem falar que ela não tinha histórico algum de violência, mas ela simplesmente mata a mulher e segue em frente. A gente não pode esquecer que, apesar de não ser um contexto convencional do que entendemos por realidade, ainda é uma realidade e ninguém mata uma pessoa do nada, sem algum traço de violência ou motivo pra isso ter aparecido antes e consegue voltar a viver na boa sem uma crise ou culpa. E, pouco depois, temos esse discurso que me deixou enojada: de como é melhor manter um relacionamento abusivo só pra ficar perto do irmão. Ela e o Elliot não moram mais juntos, mas se vêem sempre: ela não podia preferir sair de casa e ter um relacionamento bom com ele (como o que eles têm durante a série) a ficar presa em uma casa com pais abusivos só pra não ficar longe dele?

Essa questão da falsa autonomia me fez pensar em representatividade feminina em seriados de TV mais especificamente. Infelizmente, o resultado satisfatório de personagens femininos fortes, pra mim, é bem baixo, mas, como estou revendo Breaking Bad, me deparei com uma agradável surpresa: a Skyler. Quando vi a série pela primeira vez odiei a personagem (como quase todos que assistiram), mas a maturidade e fortalecimento das questões feministas me fizeram ver o quão ela é bem escrita e complexa.

A Skyler começa como a mulher que descobre que o marido está morrendo de câncer e quer que ele se trate (ela força um pouco a barra com isso – algo que não concordo, mas entendo), até aí ok. Walter White começa a fazer metanfetamina para ganhar dinheiro e deixar pra família depois de morrer. No desenrolar da série ela descobre o que ele faz e ela começa a se impor.

Muitos odeiam a Skyler por ela ser “chata” e “travar os planos do Walter”, mas a gente não pode esquecer que ela é a esposa que caiu naquela situação que ela não pediu pra estar inserida. Ela tenta denunciá-lo; se afastar (no que a família inteira, principalmente o filho, começa a criticá-la); ela teme por ela, pelo marido, pelos filhos, pela irmã e o cunhado; tenta se afastar pra ter o mínimo de segurança (e ficar com a consciência tranquila de quem tá fazendo a coisa certa) no que não dá certo e ela começa a se envolver pra ter um mínimo de controle.

Ela passa uma boa parte da série sendo deixada de fora pelo Walter, sendo vista como a vilã pelo filho, sendo vista como uma louca pela irmã e seu marido até a hora que ela descobre a verdade e começa a ter autonomia: ela quer decidir por mais quanto tempo ele fará isso, ela decide sobre o esquema de lavagem de dinheiro, ela passa a se impor como pessoa, como mulher, e a viver a própria vida.

Em uma entrevista, Anna Gunn (a atriz que interpreta Skyler) disse que o público não está preparado pra uma personagem feminina que sabe se posicionar, que os fãs a ofendiam e desejavam sua morte por conta do papel que fazia na série.

Se de um lado temos uma mulher, esposa, mãe e atual dona de casa que aprende a ter voz a partir do momento que faz parte de um plano, do outro temos uma mulher que começa cheia de pose, mas que quando se integra de fato ao plano não sabe mais como agir e vive na sombra do irmão fazendo questão de dizer que o mérito é dele.

As personagens femininas são construídas sob padrões tipicamente “masculinos”. No que diz respeito à luta, ao hacking, e à parte mais racional/de inteligência. Darlene se configura nos três aspectos: ela que mata a mulher da ECorp; ela é a pessoa que assume o plano de implantar o FEMTOCELL para hackear as informações da ECorp e alcançar o FBI; e ela é a parte inteligente que mantém a FSociety unida; mas, ao mesmo tempo, é o elo fraco da trama. Darlene, além de ter essa relação que beira o doentio com o irmão, vive um relacionamento duvidoso com seu ex-namorado (mas ainda ficante): a personagem parece insegura de assumir que gosta dele e vivenciar algo. Ela tem todos os “atrativos fortes”, que, no geral, são atribuídos aos homens, então por que, ainda assim, ela não configura uma personagem incisiva e independente? Seu papel parece ser sempre o de levantar os homens (mais especificamente o Elliot) para que eles possam assumir o controle e salvar a trama.

O que difere a Darlene da Skyler? Por que uma pode ser retratada como uma personagem autônoma e a outra, apesar de suas qualidades, não entra no mesmo rótulo?

As personagens femininas, além de serem dotadas de características dadas como masculinas para representar complexidade, têm um apelo estético muito característico: elas não podem ser muito femininas, preferencialmente têm que manter a pose de “bad girl”. Skyler é uma personagem tradicionalmente feminina: vaidosa, mãe, casada, dona de casa. Ela não abre mão de sua feminilidade ou sua família para ser uma personagem atuante: ela passa a controlar a situação. Inclusive vemos na série a personagem melhorar fisicamente: devido ao dinheiro que eles passam a ter, ela, que era vaidosa desde o início da série, passa a se vestir melhor para adentrar aquele mundo composto por ricos. É uma personagem que transcende: além de mãe e esposa se torna de fato ativa, toma iniciativas e decisões. Ela não é a pessoa que levanta o Walter, ela é a pessoa que quer apenas se manter bem e manter seus filhos bem, apesar das consequências que isso pode trazer pro seu marido. A personagem segue suas convicções independente dos resultados.

Darlene é um prato cheio para esse estereótipo de que a mulher tem que perder seu lado feminino para ser alguém importante: apesar de seu ar adolescente de óculos de coração e pirulito na boca, ela usa roupas escuras com seu cabelo meio preso e meio solto, é dotada de uma atitude de indiferença quando, na verdade, por dentro é cheia de apreço pelo seu irmão e pelo seu ex-namorado. É a representação da mulher que precisa abrir mão do seu lado feminino pra ser durona e digna de algum respeito. As três características mencionadas (violência, talento para hacking e inteligência) que tornam um personagem homem líder não tornam a Darlene uma líder e por que isso acontece? Porque ela não consegue atuar na trama. Ela resolve os problemas que surgem e, como disse, tem atitudes de reação, mas ela não contribui pro andamento da história, do enredo (que, no caso, é o plano de Elliot). O que ela faz na série poderia ser feito por qualquer personagem aleatório, mas no que diz respeito ao andamento de fato da história principal, no desenrolar ou até mesmo desfecho do plano, ela não tem uma atitude substancial, não contribui em nada.

A representação feminina da Skyler parece muito mais coerente com as mulheres reais, as mulheres que conheço e admiro: ela tem suas convicções e age de acordo com elas enquanto a Darlene vai abrindo mão de suas atitudes e até mesmo de sua possível feminilidade pra ter importância, ela é mais uma representação na mídia de mulher que serve como trampolim pro homem crescer e desenvolver uma trama.

A mídia ainda não capta a profundidade da mulher, não elabora bem as personagens, não consegue vê-las como seres independentes e com uma trama própria ao mesmo tempo que do outro lado temos um público que não sabe receber a representatividade e odeiam as mulheres que têm opiniões e atitudes porque elas estão “atrapalhando” o desenvolvimento do homem, por mais anti-herói que ele seja.

 

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