Fandom-folia

Me disseram que a alegria acabava na quarta-feira. Me disseram que o ano só começava na quinta, mas eu nunca entendi muito bem. Eu, curioso que sou, desde pequeno ficava me perguntando da onde aquelas pessoas todas fantasiadas de coisas que geralmente ninguém se veste o resto do ano tiravam suas fantasias. E da onde vinham as ideias desses looks especiais? E a vontade desgarrada de sair nas ruas em pleno verão cheios de glitter no rosto com aqueles aparatos comprados no Saara ou na 25 pelo corpo que esquentam que só? E as marchinhas tocando no Fantástico, as escolas desfilando de madrugada no meio da chuva e esses foliões em peso nas ruas reverenciando esse tal de Carnaval? E essa alegria que se transformava num sorriso de ponta-a-ponta: vinha da onde?

Conforme fui crescendo, analisei melhor. De fato, o Carnaval é um refúgio para os comuns rotineiros do cotidiano que trabalham 8 horas ou mais por dia dentro de um escritório e não têm a oportunidade e nem tempo de estarem alegres o tempo inteiro. Os mais ricos de criatividade escolhem o Carnaval para ostentar o mais intenso investimento criativo em se tornar um folião enquanto os menos desprovidos acabam se juntando ao trabalho dos publicitários e marqueteiros de lojas e marcas de vestimentas carnavalescas para formar suas fantasias de camisinha ambulante, John Lennon e power-ranger rosa. O Carnaval reúne tudo e todos da melhor forma possível e, por incrível que pareça, todos os foliões – do mais conservador e preconceituoso ao mais tranquilove e de-boassa – curtem essa festa, todos juntos.

É super curioso pensar que os quatro dias de folia surgiram há tanto tempo que possivelmente os foliões se fantasiavam de folhas secas e couros de animais caçados da floresta. Ou não se vestiam de nada: afinal, a origem do Carnaval é pagã e só chegou ao Cristianismo porque os bárbaros resolveram incorporá-lo, talvez por terem gostado da ideia ou porquê eram muito fãs disso tudo. E no Brasil, a chegada do Carnaval deu em festa, como já era de se esperar para uma população que no futuro reinaria no mundo dos memes e que àquela época já curtia uma boa farra. A nossa cultura provém basicamente desse tipo de relação apaixonante com o que tomava o gosto do povo, e isso se tornava tradição. E a nossa tradição sempre foi amar e venerar certos costumes.

Já pararam para pensar que foram os nossos tatara-tatara-tataravôs que criaram o Carnaval como conhecemos hoje em dia e se tornaram fãs da própria criação carnavalesca e requintadíssima? Foi inovador! Posso afirmar que foi o primeiro grande fandom existente no Brasil que há registrado na História. Aí os bailes de salão se tornaram blocos e cordões e passaram a ocupar as ruas das cidades mais importantes do Brasil Colônia, do Brasil Império, do Brasil República e do Brasil Pós-Golpes. Aí o samba foi criado pela população negra para misturar o que é bom com o que é maravilhoso. Aí as escolas de samba passaram a ganhar notoriedade e conseguiram desfilar na Avenida Presidente Vargas bem antes da construção do Sambódromo. Aí houve a construção do Sambódromo. Da Apoteose. Da Cidade do Samba. Do requinte todo, mais requinte do que já era.

Confesso que até hoje consigo notar em mim uma certa curiosidade um tanto quanto antropológica sobre esses quatro dias que antecedem a quarta-feira de cinzas. Já saí em muitos blocos por aí desde pequenininho, mas nunca consegui captar muito bem essa aura que as ruas abarrotadas de gente num calorão de 400°C exalam, talvez por eu ser um tanto quanto fresco comparado com os foliões em geral. Mas não posso ser hipócrita: ô festa bonita! A grande questão é que basicamente toda a população brasileira acabou ingressando nesse fandom gigantesco que nenhum grupo de Facebook conseguiria reunir em seus algoritmos. A relação dos foliões com o Carnaval e essa folia toda é incrível de se admirar. Notamos de longe, inclusive. Mas tem que ser fã mesmo para adentrar ao movimento, assim como qualquer série de Netflix ou qualquer banda de rock triste dos anos 80 inspiradas por Joy Division.

 

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